Nuances do corpo cênico e tônus corporal
Introdução – postura de base
Como é de conhecimento dos atores em geral, a postura de base é um fundamento inicial na nossa preparação para o ofício: pés paralelos, alinhados à largura dos ombros, encaixe da postura com a contração dos glúteos e do abdômen e por fim a cabeça erguida, olhando para a linha do horizonte. Essa postura traça um eixo de atenção e possibilita às atrizes e aos atores realizar movimentos para qualquer direção a partir da base.
Segundo Fabião (2010), experimentamos algo como uma tensão relaxada quando os pés estão firmes no chão, enraizados de tal modo que o corpo pode se expandir ao extremo sem se esvair. Talvez pareça complicado, porém esse é um fundamento inicial, lembra? Logo, para a construção de uma personagem, a exploração do corpo do ator vai muito além. Hoje vamos falar de tônus, gesto e expressão, tanto corporal quanto facial.
Tônus corporal
Quando ouvimos a palavra tônus, podemos pensar que o assunto é academia, desenvolvimento de músculos, dicas para hipertrofia, etc., porém o tônus é, para o ator, a equação entre contração e flexibilidade para construção de movimentos. Por exemplo: para demonstrar uma situação de perda de controle no movimento de uma das pernas, o ator precisa encontrar o limite entre contração muscular e flexibilidade do movimento, para que ele consiga demonstrar aquela condição, que pode inclusive ser a queixa principal de um paciente simulado.
Nesse sentido, a investigação corporal para desenvolvimento do tônus deve também seguir a lógica da preservação do corpo da atriz ou do ator, ou seja, mesmo diante de posições desconfortáveis ou intensas – como nas que vivenciamos para simular um trabalho de parto – devemos sempre lembrar do nosso eixo e manter a consciência de que estamos executando a equação entre contração e flexibilidade, logo, cabe a nós perceber os limites do nosso corpo e resolver essa equação de maneira que não nos lesione.
Além disso, como nos alerta Gilbert (2015), o ego é, metaforicamente, um péssimo líder, porque ele nunca está satisfeito com nossos “serviços”, desejando sempre mais e mais recompensas. Evidentemente, atrizes e atores querem executar bem o seu trabalho e querem ser reconhecidos por isso. Em se tratando de paciente simulado, podemos dar um verdadeiro show em cena, porém nossa busca nunca são os aplausos, logo, a nossa construção de personagem não é pela dramatização com movimentos, falas e gestos exagerados e sim pela atuação na medida justa para que o aprendizado se faça. Aplausos não estão presentes ao final da consulta simulada e se assim acontecer um dia, devemos entender que ali não é o lugar para isso.
O gesto
O paciente simulado sabe que está contracenando com alguém que não atua, portanto a construção da personagem deve ser levada ao sutil e para nos ajudar temos a etapa de construção do gesto ao nosso favor. O gesto serve para, minimamente, nos aprofundar no papel e demonstrar, sem palavras, nuances de interpretação que só são possíveis desde que acreditemos na importância delas. É a tal da fé cênica. Como já defendia Stanislavski (1994), para os atores tem importância a realidade da vida interior do espírito humano e a nossa fé nesta realidade. Ou seja, pouco importa se nosso trabalho com paciente simulado será em um consultório dentro da faculdade, em uma sala de aula ou mesmo em um palco sem cenário nenhum: a nós cabe compreender internamente as emoções daquele paciente, pois é isso que vai nos possibilitar entregar ao aluno os sinais sutis que o levarão ao desenvolvimento do raciocínio clínico para elaboração da hipótese diagnóstica.
Expressão facial
Impossível falar de corpo cênico sem falar de expressão facial. O aquecimento dos músculos da face faz parte do nosso aquecimento corporal e também é ali que começa a preparação vocal (mas isso é assunto para um outro momento, rs!). Se o paciente simulado é material de estudo para um médico, então o corpo desse paciente é como um livro e o nosso rosto é um capítulo inteiro! Cada ponto de tensão, cada respiração, cada fala, cada linha de expressão que destacamos pelos movimentos faciais, cada olhar, tudo isso é material, são como páginas que o aluno está lendo para compreender o que acontece com aquele paciente.
Sobre o olhar, temos aí um ponto sensível para a atriz e o ator que desejam realizar simulação clínica: o palco. O consultório simulado é como um palco, porém nosso olhar tem um peso muito maior do que quando atuamos para centenas de pessoas em um teatro. Por mais que o olhar componha a personagem, sabemos que muitas vezes nossos olhos não são nitidamente vistos em um palco, o que é muito diferente no consultório simulado, já que estamos cara a cara com nosso público.
Para todo e qualquer desafio, vale ressaltar as palavras de Oliveira (2000) que nos alerta que, sempre que dissermos “já está bom”, devemos parar e recomeçar para fazer melhor, pois o ponto forte da interpretação é o aprimoramento constante da personagem. Trazendo essa reflexão para o olhar, é essencial que, ao atuarmos como paciente simulado, tenhamos cada vez mais a consciência do sutil e utilizemos a oportunidade de aprimorar nossa expressão visual.
O corpo é a cena
Podemos concluir que enquanto pacientes simulados somos muito importantes para o desenvolvimento profissional de quem trabalha na área da saúde e que nosso trabalho só existe porque tudo o que compõe a cena parte da nossa expressão, seja ela corporal ou facial. Do contrário, o uso do manequim (simulador de paciente humano) e de dispositivos robóticos seriam capazes de substituir atrizes e atores. Por mais avançada que esteja a tecnologia relacionada a esses dispositivos, tais avanços não são capazes de reproduzir nuances de atuação através dos elementos verbais e não verbais de expressão, como a respiração, o gestual, e as expressões corporais e faciais que executamos. É uma dádiva e uma grande responsabilidade saber que tais tecnologias não superam a cognição e a expressão do espírito humano. Somos poderosas e poderosos: Evoé!
Artigo: Dany Melo
Revisão: Karen Estevam
Junho, 2023.
Imagens: arquivo pessoal ATO Simulação Clínica.
Referências
Fabião, Eleonora. Corpo cênico, estado cênico. Revista Contracorpos – Eletrônica, v.10, n.3, p.321-326, set-dez 2010
Gilbert, Elizabeth, Grande Magia: vida criativa sem medo. Rio de Janeiro, Objetiva, 2015
Oliveira, José Eduardo de. O ministério do teatro I: exercícios, jogos cênicos e textos. São Paulo. Eclesia, 2000
Stanislavski, Constantin (1863-1938). A preparação do ator. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2013